
No RS a lei estadual proíbe a comercialização de agrotóxicos proibidos em seu país de origem. Agora querem mudar a lei.
Matéria publicada no Sul21 em 01/6/2014:
Contra lei pioneira, mais um recorrente golpe
Adão Villaverde*
Ao saudar, durante grande expediente, no Parlamento, no ano passado, os 30 anos da lei de controle dos agrotóxicos e biocidas, insisti em um alerta baseado na perseverança continuada com que os inimigos da legislação a favor da vida agem, tentando, sempre, beneficiar-se de situações dotados de vantagens econômicas que se sobrepõem aos interesses da sociedade.
Eu dizia, à época, na manifestação em plenário que “esta lei é recorrentemente atacada pelos arautos do retrocesso, pelos defensores do “progresso” a qualquer preço, pelos gestores “entreguistas” que se subordinam a interesses particularistas ou financeiros, ao invés de atentarem para os anseios das pessoas, para o bem-estar da nossa gente. E por isso temos que estar alertas e dispostos a defender sua plena integralidade. Sempre. E permanentemente”.
Seguia eu, naquela fala: “Da última vez, em dezembro passado, aqui mesmo na Assembleia Legislativa, os que se opõe à legislação defenderam sua “flexibilização”, principalmente no que diz respeito àquela incômoda obrigatoriedade do impedimento de liberação dos produtos que são proibidos em seus países de origem. Querem que um produto, cuja utilização é proibida na nação onde foi fabricado, tenha seu uso liberado em solo gaúcho. Este produto de alta toxidade e contaminação do meio ambiente já foi banido nos EUA, por exemplo, mas continua com seu emprego liberado no resto do Brasil, exceto no RS. O fabricante norte-americano exporta, por exemplo, praticamente toda produção para nosso país, que ostenta a duvidosa posição de campeão mundial de consumo de agrotóxicos. E somente por conta da atual legislação, a lei 7.747, é que o RS está protegido dos riscos da sua utilização, proibida em território riograndense”.
Repete-se agora, mais uma tentativa deste viés golpista, com o eufemismo de se flexibilizar a lei.
A manchete de jornal “Agrotóxicos, desafio à lei ambiental”, do dia 23 de maio, alude a decisões do Tribunal de Justiça do RS, que questionam os limites da legislação vigente no estado ao beneficiar duas indústrias de veneno com a liberação de produtos altamente tóxico, sem registro no país de origem e na Comunidade Europeia, onde a comercialização é proibida.
O TJ escuda-se no fato de que estes agrotóxicos estão registrados fora do estado em instituições de nível federal da Agricultura (Mapa), Saúde (Anvisa) e Meio Ambiente (Ibama). Por isso discordam de que aqui no RS a Fepam impeça a venda e o uso dos produtos, obedecendo à lei que carregou o símbolo do vanguardismo ambiental e da sustentabilidade, que já nos orgulhou em passado recente.
A sentença fria acerca da abrangência e do alcance hierárquico da lei estabelece que a Fepam não tem competência constitucional para impedir a comercialização dos produtos que ela considera “extremamente tóxicos” porque estão cadastrados na Anvisa.
A lei representou a instigação e a rebeldia social, em uma época cinzenta de nossa trajetória, nos chamados “anos de chumbo”, com uma ditadura inaceitável que nos envergonhou, também em passado recente. É referenciada hoje, também por uma geração renovada de jovens ativistas e produtores agroecológicos, que há três décadas não participaram diretamente dos enfrentamentos de 1982. Esta lei potencializa ao máximo o Poder Legislativo, exercendo sua missão precípua de legislar, de elaborar legislações, compatibilizada com a vontade e o interesse da sociedade que o Parlamento representa. Conduz uma construção coletiva de muitas pessoas e entidades preocupadas com a preservação do ambiente e mobilizadas por uma visão de sustentabilidade para nossas comunidades conquistarem melhor qualidade de vida.
Mais importante é o conceito inicial de sustentabilidade que já amparava o projeto o PL 155/1982 proposto pelo então deputado Antenor Ferrari do qual nasceu a lei número 7747, determinando, fundamentalmente, no parágrafo segundo de seu artigo primeiro, que:
“Só serão admitidos, em território estadual, a distribuição e comercialização de produtos agrotóxicos e biocidas já registrados no órgão federal competente e que, se resultantes de importação, tenham uso autorizado em seu país de origem”. A lei exige, ainda, o prévio cadastramento dos produtos nos órgãos estaduais da Saúde e do Meio Ambiente e consagra a obrigatoriedade do Receituário Agronômico, que concede ao profissional da Agronomia a exclusividade da competência técnica para receitar algum tipo de biocida para aplicação em lavouras. A lei refletiu os anseios da população na efervescência daqueles anos, com os protestos públicos contra a devastação ambiental arbitrária, a criação de entidades ecológicas como a Agapan, as acusações de conteúdo de José Lutzenberger aos ataques sofridos pelo meio ambiente e uma massa crítica que desenvolvia um caldo cultural favorável à redemocratização do Brasil, prenunciando o fim da ditadura já fragilizada.
Além de Lutz, que liderava o movimento, muitos outros contribuíram com a disposição, a coragem e a dedicação para construir esta mudança, emblematizada na lei de controle dos agrotóxicos usados para vitaminar uma monocultura de exportação que transformava o Brasil e o RS em um depósito de pesticidas e sua população, em objeto de pesquisa, quase ratos de laboratórios. Vale registrar aqui Augusto Carneiro, Magda Renner, Giselda Castro, Hilda Zimmermann, Sebastião Pinheiro, Flávio Lewgoy, Celso Marques, Jacques Saldanha, Ilza Girardi, Francisco Milanez, entre muitos outros.

Lívia, filha da pioneira ambientalista Hilda Zimmermann, mostra um cartaz sobre a lei aprovada nos anos 80 em 3 de abril de 2013, na comemoração dos 30 anos da aprovação da lei.
A lei contempla cuidados com a saúde, com a produção de alimentos com qualidade, defesa do meio ambiente, além de servir de elemento importante para a construção de uma visão de sustentabilidade que projetou o RS e, por decorrência, a defesa da vida de todos os gaúchos.
Ser contra a flexibilização da lei de controle dos agrotóxicos é ser a favor do rompimento com o conceito do progresso que persegue o crescimento a qualquer custo, para incorporar a prática do desenvolvimento sustentável com inclusão social e inovação tecnológica, agregando, para além dos interesses presentes, um compromisso ético com as gerações futuras.
O modelo de desenvolvimento sustentável é aquele em que o bem-estar passa pela inclusão, coesão social, geração de renda e distribuição e qualidade de vida, menor desigualdade, dando atenção às pessoas e cuidando as cidades, os serviços públicos de saúde e educação de qualidade, a segurança pública, a produção de alimentos saudáveis, a preocupação com água, com o saneamento básico, com a energia renovável, com a defesa do planeta e da vida. Em um mundo que se desenvolve velozmente e se transforma de forma recorrente, é fundamental compreender que a construção do futuro não pode ser um mero prolongamento do presente. É preciso um novo tipo de desenvolvimento projetado a partir da visão de sustentabilidade, que seja inclusivo, criativo, participativo, saudável, cuidadoso e radicalmente democrático, para proporcionar qualidade de vida a todos os cidadãos. Valorizando a sociedade, suas organizações e suas mobilizações, numa perspectiva mais ativa de participação na vida pública. Barrando retrocessos ambientais e propugnando pelos seus avanços, para construir políticas e ações que respondam aos desafios colocados pelo mundo contemporâneo.
Por isto, ser a favor da integridade desta lei é, sobretudo, comprometer-se com a preservação do meio ambiente, a saúde e a celebração à vida de todos nós.
*Adão Villaverde é professor, engenheiro e deputado estadual
Fonte: http://www.sul21.com.br/jornal/contra-lei-pioneira-mais-um-recorrente-golpe/